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terça-feira, 19 de maio de 2015

De onde nasce o perdão

Um sábio comerciante estava em sua lojinha quando um ladrão entrou e levou todo o dinheiro que ele tinha recebido naquele dia. Quando o bandido saiu da loja, o comerciante correu, gritando: “eu te perdoo!”. As pessoas que estavam na rua e assistiram à cena se espantaram com a urgência do sujeito em fazer aquilo. Sábio que era, o negociante disse: “não quero ficar com essa mágoa para o resto da minha vida”. Apesar de carregada de todo exagero das parábolas, a historinha mostra que o perdão é algo que fazemos mais por nós mesmos do que pelos outros. O entendimento que se tem desse sentimento é, muitas vezes, encapado pelos conceitos da religião. O Antigo Testamento valoriza o perdão divino – só ele liberta. O Novo Testamento passa a dar importância ao perdão humano e o Alcorão junta as duas formas. Mas o ato tem mais a ver com a condição de humano do que com a religião que se abraça. Mais a ver com a necessidade de não carregar mágoas pesadas demais do que a de desculpar os outros ou nós mesmos. A etimologia da palavra é perdonare que, no latim tardio, tem o significado de doar. “No fundo, ao fazer isso você doa seu direito de estar ressentido com quem fez a agressão”, explica a psicoterapeuta especializada em relacionamentos familiares Lana Harari. Ou seja, abre mão de sentir-se vítima de algum ato ruim. Isso não significa minimizar a tal agressão, mas ser capaz de despir-se da camiseta de coitadinho. Talvez esse desapego intrínseco da atitude seja um dos motivos que a torna tão complicada de tomar. Afinal, existe um pouco de abnegado em quem perdoa já que o papel de ofendido cai bem na maior parte das situações. Ao mesmo tempo que atrai uma certa simpatia, deixa a pessoa livre do erro. Quem agiu de maneira equivocada foi o ofensor, eu sou apenas a vítima. Quer papel mais confortável que esse? Para perdoar é preciso olhar para dentro e correr o risco de, até, perceber que você, o ofendido, talvez também tenha alguma responsabilidade naquele ato. Para os budistas, qualquer coisa que aconteça na nossa vida é resultado de uma semente plantada em algum momento. Por isso, uma ofensa de um amigo acontece para equilibrar alguma ação passada, uma semente de má qualidade. Assim o amigo foi apenas um agente. “Se a pessoa reage mal à agressão, à decepção, com mais mágoa, acaba por plantar outra semente ruim”, explica a monja Kelsang Mudita, do Centro de Meditação Kadampa Brasil. Se, por outro lado, reage bem, ela consegue quebrar o ciclo. Cria-se uma esfera de paz e de aceitação que atinge todos que estão por perto.

Muitas vezes o ato de perdoar faz par perfeito com o de pedir perdão. O ho’oponopono é uma antiga prática havaiana de reconciliação, praticada em família ou em grupo de pessoas, com o objetivo de restaurar e manter as boas relações. A reunião geralmente é conduzida pelo membro mais experiente do núcleo. O problema é discutido, há espaço para o silêncio, para compreender o que realmente aconteceu. Mas o centro da prática consiste em repetir, como se fosse um mantra, as frases: “Eu sinto muito”, “Por favor, me perdoe”, “Eu te amo”, “Muito obrigado, sou grato”.

Desculpe qualquer coisa
A Igreja Católica, há pouco mais de 14 anos, preparou um documento chamado “Mensagem ao Povo Brasileiro” por meio do qual pedia perdão pelos atos cometidos pela entidade, no passado, contra negros e indígenas. Ela não pedia desculpas, mas perdão, o que é bem diferente. Ele não exime a culpa. A mãe que faz isso em relação a pessoa que atropelou e matou seu filho não está retirando das costas do motorista a responsabilidade pelo ato. Isso também não implica, necessariamente, em retomar uma relação – caso houvesse – da mesma forma que ela era antes. Você perdoa, mas não faz questão de continuar próximo daquela pessoa, o que reafirma que é um processo interno. Mas significa, sim, libertar o outro do seu rancor. De nada adianta fingir que perdoa o marido ou a esposa traidores mas continuar usando o suposto erro para jogar na cara toda vez que aparecer a menor briguinha. A ação não é completa se você mantém a relação de dominador e de dominado. Quem perdoa não esquece. Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul, ao deixar o cargo, em junho de 1999, disse: “Os sul-africanos devem recordar o passado terrível para que possamos lidar com ele, perdoando, pois o perdão é necessário, mas sem nunca esquecer”. Se você apaga alguma coisa da sua história não pode lidar com ela e, portanto, também não dá para perdoar. Além disso, deixa uma brecha para que aquilo volte a acontecer. “Perdoar é, ainda que mantendo o fato na memória, ser capaz de não sofrer, olhar para o que ocorreu com bastante objetividade e perceber que as coisas são como são”, diz a filósofa e palestrante Dulce Magalhães.

Querer não é poder
Sabe quando você deseja tanto uma coisa que acaba, finalmente, por consegui-la? Pois é, com o perdão não é assim. Infelizmente, aqui, querer não é poder. Se você quer sair do inferno e ir para o céu nesse jogo de amarelinha, claro que a primeira casinha é, sim, a vontade. “O processo exige um investimento interno”, explica a psicoterapeuta e neurocientista Ana Paula Cuocolo Machia. Mas faltam as outras nove casinhas. Numa delas está a importância que se dá ao relacionamento rompido e que pode ser reatado com o ato. “Mas implica também em uma revisão de valores e, principalmente, do posicionamento diante dos fatos. A pessoa tem de, aos poucos, ir abandonando o papel de ofendido para conseguir um necessário afastamento emocional”, diz Ana Paula. É mais ou menos como um insight, que acontece quando estamos preparados. “É preciso descobrir o tempo certo de perdoar. Tudo é mutável, nunca pisamos duas vezes no mesmo rio. A consciência também pode avançar para outras percepções e vemos as coisas de outro modo. Então, fica mais fácil concedê-lo”, diz a filósofa Dulce Magalhães. Existe também a opção por não perdoar. Por que não?

Uma pesquisa realizada na Itália avaliou o que acontecia dentro do cérebro de voluntários – por meio de ressonância magnética – que seguiam um roteiro através do qual eram orientados a pensar em uma ofensa recebida e, depois, a perdoá-la. Homens e mulheres só conseguiam fazer isso nas situações em que se colocavam no lugar do agressor e compreendiam os motivos pelos quais ele havia feito aquilo. É um indício de que essa ação não depende simplesmente de fatos, mas sim do julgamento que fazemos das intenções de quem nos ofendeu e feriu. No entanto, alguns atos são tão marcantes, magoam tão profundamente, que não é possível passar por cima deles. “Mas se você opta por não oferecer o perdão, não deve ficar ruminando. Melhor romper de vez, cortar a relação e virar a página”, avalia a psicoterapeuta Lana Harari. Guardar o rancor dentro de si pode trazer consequências bem ruins. “A pessoa alimenta a raiva, o sofrimento vivido todo santo dia. E acaba criando uma autoimagem de fraca, de vítima da situação. E as consequências disso podem ser físicas, com insônia, ansiedade, desânimo”, diz Lana Harari.

Mais autocompaixão Gilberto Gil diz na música Drão: “não há o que perdoar, por isso mesmo é que há de haver mais compaixão”. Se somos capazes de relevar os outros, por que não fazemos isso conosco? Muitas vezes nos falta a capacidade de autocompaixão, de sermos tão legais com a pessoa que habita nosso corpo quanto somos com os amigos ou até com estranhos. “É preciso entender que em determinado momento fizemos o que era possível naquela situação. Não podemos julgar se era errado ou não com os olhos de hoje”, diz a monja Kelsang Mudita. Para isso é preciso ter humildade e entender que você não tem sempre o controle das emoções. “Se hoje posso me arrepender de algo e consigo pensar que faria diferente, isso significa que evoluí e me tornei alguém melhor. Sem o episódio que gera desconforto, talvez eu não tivesse me transformado”, raciocina Dulce Magalhães. Aqui, o perdão também não é uma decisão a ser tomada. “É preciso aprender a dar um significado ao que aconteceu, tirar a culpa de si mesma. Isso pode levar anos, ou nunca acontecer. Nesse caso, a pessoa reprime a emoção, que vai para a sombra”, diz Lana Harari. É bem mais difícil nessa situação virar a página como quando se nega o perdão ao outro. A culpa contida se manifesta de várias formas, como depressão, cólera. Ou você pega um desvio que a leva a culpar os outros por tudo o que acontece, como se isso compensasse a culpa que sente dentro de si. Por isso, mais bondade consigo mesmo, mais compaixão com o mundo. Nada em nossa história poderia ser descartado para nos tornarmos quem somos, sejam os erros, sejam os acertos. “Assim, aprender a perdoar a si próprio é, antes de tudo, dar-se conta de uma lição aprendida e olhar para a experiência como algo importante para nos tornarmos melhores”, diz Dulce Magalhães. No mínimo, você se torna mais iluminado, como o sábio comerciante do início desse texto.

Texto: Ivonete Lucirio
Fonte: Revista Vida Simples

sábado, 9 de maio de 2015

Para que serve uma relação?

Uma relação tem que servir para você se sentir 100% à vontade com outra pessoa, à vontade para concordar com ela e discordar dela, para ter sexo sem não-me-toques ou para cair no sono logo após o jantar, pregado.

Uma relação tem que servir para você ter com quem ir ao cinema de mãos dadas, para ter alguém que instale o som novo enquanto você prepara uma omelete, para ter alguém com quem viajar para um país distante, para ter alguém com quem ficar em silêncio sem que nenhum dos dois se incomode com isso.

Uma relação tem que servir para, às vezes, estimular você a se produzir, e, quase sempre, estimular você a ser do jeito que é, de cara lavada e bonita a seu modo.

Uma relação tem que servir para um e outro se sentirem amparados nas suas inquietações, para ensinar a confiar, a respeitar as diferenças que há entre as pessoas, e deve servir para fazer os dois se divertirem demais, mesmo em casa, principalmente em casa.

Uma relação tem que servir para cobrir as despesas um do outro num momento de aperto, e cobrir as dores um do outro num momento de melancolia, e cobrirem corpo um do outro quando o cobertor cair.

Uma relação tem que servir para um acompanhar o outro ao médico, para um perdoar as fraquezas do outro, para um abrir a garrafa de vinho e para o outro abrir o jogo, e para os dois abrirem-se para o mundo, cientes de que o mundo não se resume aos dois.

 Drauzio Varella