Saber perdoar a si mesmo e a quem nos fez mal pode não ser fácil. Mas é um ato necessário para se libertar de rancores, evitar doenças e tocar a vida adiante
Você pode começar enchendo os bolsos de pedras. Depois, pode colocar outras dentro de roupas íntimas e no interior de um chapéu ou boné. Por fim, recheie de pedregulhos uma mochila grande, que será carregada nas costas até o fim do dia. Para muitos essa sensação será equivalente ao peso trazido na alma pelas mágoas acumuladas ao longo da vida.
Mágoas que poderiam ser dispensadas, como as tais pedras, com o difícil – mas necessário – exercício do perdão. O desenvolvimento de vários problemas psíquicos (como depressão) e físicos (como doenças autoimunes) estaria ligado a esse acúmulo de ressentimentos, diz a psicóloga e terapeuta familiar sistêmica Daniela Bertoncello. “Recordo-me de uma cliente que se deprimiu por conta de uma rejeição dos pais na infância. Na vida adulta, quando ela se tornou mãe e teve de lidar com seu papel materno, veio à tona todo o conflito, um quadro da depressão e a necessidade de perdoar seus pais”, conta.De bem com a consciência
Tão importante quanto perdoar é tomar a iniciativa de pedir perdão, algo que muitos não fazem por uma questão de orgulho. “Eu perdoo, mas confesso que tenho dificuldades de pedir perdão. Talvez seja receio de mostrar a minha fraqueza diante do outro”, reconhece o segurança de lojas Almir Cunha.
Diferente de Almir, o auxiliar jurídico Maurício Filoco garante que não pensa duas vezes em pedir perdão quando percebe que errou. Depois de fazer a ex-mulher sofrer com uma traição, ele também penou com o peso da culpa. “Foi duro, porque eu larguei a mulher com quem estava casado para ficar com outra que teve um filho meu. Foi um ato impulsivo e, no fim, percebi que eu amava realmente a minha primeira mulher. Só que ela acabou casando novamente e eu fiquei solteiro”, conta.
A tristeza diminuiu um pouco quando ele conseguiu pedir perdão à ex-mulher. “Ela não quis voltar comigo, mas aceitou o perdão. Isso me fez bem, me deixou mais leve, e espero que a tenha deixado mais leve também.” Filoco tem consciência de que de nada vale pedir perdão se não há uma mudança de comportamento. “Se você continua aprontando, o pedido não tem valor. Eu mesmo aprendi a lição, e serei fiel quando encontrar uma nova mulher.”
Pessoas amarguradas também têm problemas recorrentes de relacionamento, ressalta a psicoterapeuta Eneida Ludgero da Silva: “Se não perdoamos, ficamos presos ao momento do dano, perda ou rejeição, e com isso abrimos mão de viver plenamente. O perdão é uma ponte que usamos para prosseguir caminhando, quando a estrada, por qualquer motivo, foi interrompida”. Para ela, é comum ouvir dessas pessoas expressões como “os homens (ou mulheres) são todos iguais”, o que expressa um sentimento de desconfiança generalizada, como se uma experiência ruim estivesse sempre prestes a se repetir.
A psicóloga e consultora organizacional Ana Borgo acrescenta, ainda, que o poder do perdão foi comprovado cientificamente pelo psicólogo americano Fred Luskin, da Universidade de Stanford, que escreveu um livro sobre o assunto e comprovou, por meio de pesquisas, que o rancor desencadeia uma série de doenças, inclusive câncer.
Você consegue
Diante de todos os males que o rancor pode causar, uma dúvida permanece: por que é tão difícil perdoar a si mesmo e aos outros? Por que é tão duro seguir o célebre exemplo do papa João Paulo II (1920-2005), que perdoou pessoalmente o homem que atirou contra ele?
Para Ana Borgo, muitos confundem o perdão com a aceitação de uma injustiça, o que seria abominável. “Mas perdoar não é ser condescendente. Não é, por exemplo, deixar livre um bandido, que precisa se responsabilizar por seus atos. Perdoar é se libertar do sentimento de mágoa que está o prendendo.”
A cozinheira Valdirene Andrade é daquelas que ainda não consegue perdoar naturalmente. “Eu me considero ainda muito teimosa para perdoar, e não consigo nem ficar perto da pessoa que me faz mal. Espero um dia ter esse poder.”
Como modelo, Valdirene tem a amiga Ivanilde Silva, também cozinheira. Ivanilde não só perdoou uma colega que provocou sua demissão, como conseguiu para ela um emprego, quando essa colega ficou desempregada. “Se vejo que alguém me faz mal por ciúmes ou falta de capacidade, a única coisa que sinto é pena. Quando essa colega me prejudicou, fui à igreja e pedi misericórdia para ela. Logo em seguida eu estava empregada e até pude ajudá-la. É claro que não tenho mais a mesma confiança nela, mas a perdoei e não a quero mal.”
Segundo Ivanilde, essa prática foi aprendida sobretudo com a vida. “Perdi meus pais muito cedo e vi que não me fazia bem carregar mágoas. O perdão nos deixa mais leves”, diz ela.
Qual o seu limite?
Ivanilde afirma que sua capacidade de perdoar é grande, mas reconhece que teria dificuldade em desculpar alguém que tivesse feito mal a seus filhos e netos. Frente a situações extremas, a psicóloga Daniela reconhece que, pela própria condição de imperfeição do ser humano, nem tudo pode ser perdoado. Porém, sempre há quem consiga, sozinho ou com a ajuda de terapias, superar dores impensáveis. “Já tive uma paciente que conseguiu perdoar o próprio pai, de quem sofreu abuso sexual na infância juntamente com suas irmãs, a partir do momento em que aceitou cuidar dele quando adoeceu e faleceu em sua casa. Ela viu seu pai sofrer tanto, que o perdoou, como se a vida mesmo tivesse trazido a punição que merecia.”
Fonte: Gazeta do Povo
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