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segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Por que não me mudo para a Bahia?

Para marcar o fim das minhas férias e retorno ao meu trabalho, este texto do Rubem Alves me caiu no colo... M-A-R-A-V-I-L-H-O-S-O!!!! A minha sugestão de leitura é o livro “Se eu pudesse viver minha vida novamente...” Sábias palavras... refletindo sobre elas até agora... E o engraçado disso tudo é que em um almoço, na casa "de" Bárbara e Joarez, ouvi essa mesma pergunta... "Por que vc náo vem morar na Bahia, fazer seu mestrado aqui?' E aí???

Com vocês... “Por que não me mudo para a Bahia?”


Há dois tipos de férias. O primeiro é quando o cavalo cansado, magro, castrado, vai para uma campina verde, sem ninguém que lhe dê ordens, sem hora para se levantar, sem nada para fazer, é só vadiar, pastar, descansar, correr, dormir, fazer o que lhe der na telha! Que felicidade! Bom seria que a vida toda fosse assim! Mas o tempo corre rápido. Passadas duas semanas, descansado e gordo, é hora de voltar para onde estava antes... para o cabresto, cerca, arreio, carroça, esporas e chicote, para isto que se chama realidade. É hora de retomar o trabalho no lugar onde ele havia deixado.
Ah! Todo cavalo precisa de férias para aguentar mais um ano de trabalho duro... Descansar para trabalhar! As empresas sabem disso. Se dão férias para os seus cavalos, não é porque os amem em liberdade. É porque precisam deles na sua volta, revigorados e trabalhadores, agradecidos à empresa que lhes dá férias. E há mesmo os cavalos que, ao final das férias, começam a sentir saudades do arreio e da carroça, querem voltar porque se cansam da liberdade. Todo mundo diz que quer liberdade. É mentira. A liberdade traz muita confusão à cabeça. Melhores são as rotinas, que nos livram da maçada de ter que tomar decisões sobre o que fazer com a liberdade. Quem tem rotinas não precisa tomar decisões. A vida já está decidida. O cavaleiro nem precisa puxar a rédea: o cavalo sabe o caminho a seguir.
O segundo tipo é quando as férias produzem uma perturbação não esperada na cabeça do cavalo. Aqueles campos verdes sem cercas começam a mexer lá no fundo da sua alma, justo no lugar onde estava enterrado o cavalo selvagem que ele fora um dia, antes do cabresto, do arreio e da castração. E aí um milagre acontece: o cavalo selvagem morto ressuscita, se apossa do corpo do cavalo doméstico, que vira outro e até reaprende as esquecidas artes de relinchar, de empinar, de saltar cercas, de disparar a galope pela pura alegria de correr, imaginando-se um ser alado, Pégaso voando pelas pastagens azuis do céu e pulando sobre as nuvens... É tão bom... E, de repente, deitado sob uma árvore, ele se lembra de que está chegando a sua hora de voltar... Mas ele não quer voltar. Quer ficar. Surgem então, na sua cabeça, perguntas que nunca fizera: “Por que é que eu sempre volto? Será mesmo preciso voltar? Estou condenado ao cabresto, arreio e castração? É isso que é a vida? Por que voltar se não quero? Volto porque é preciso? Mas será que preciso mesmo? Minha vida não pode ser diferente?
Essas ideias malucas só acontecem quando o cavalo está só com seus pensamentos. Férias em solidão são perigosas. É por isso que muitas empresas fazem colônias de férias para os seus empregados. Para que não fiquem sozinhos. Para que não pensem pensamentos doidos. Juntos, eles pensam pensamentos que todos pensam. Pensamentos normais. Os de sempre. O mesmo. Sobre o que conversam os cavalos domésticos nas colônias de férias? Eles conversam sobre cabestros, arreios, carroças, cavaleiros, carroceiros... E, assim, os cavalos selvagens continuam enterrados...
Eu quero me mudar para a Bahia. Eu posso me mudar para a Bahia. Mas eu não vou me mudar para a Bahia. Cavalo doméstico, voltei e vou ficar onde estou, onde sempre estive, pensando e escrevendo que quero me mudar para a Bahia, mas não vou me mudar para a Bahia. A Bahia soltou meu cavalo selvagem... Uma Bahia diferente, sem axé, sem atabaques, sem berimbau, sem capoeira, sem acarajé, sem som eletrônico, sem “o que é que a baiana tem?”, sem vatapá... Uma Bahia anterior à Bahia, uma Bahia muito antiga que está se perdendo na espuma do mar, uma Bahia que me leva ao início do mundo. Foi essa Bahia que viu Sophia de Mello Breyner Andresen, maravilhosa poetisa portuguesa, Bahia virgem, Bahia dos descobridores:
“Um oceano de músculos verdes, um ídolo de muitos braços como um polvo, caos incorruptível que irrompe e um tumulto ordenado, bailarino retorcido em redor dos navios esticados. O mar tornou-se de repente muito novo e muito antigo para mostrar as praias e um povo de homens recém-criados ainda cor de barro, ainda nus, ainda deslumbrados...”
Não, não se trata de praia. Praia é Guarujá, Ipanema, Porto Seguro, Cabo Frio, Camboriú, formigação humana, agito. Nessas praias o barulho não permite que se ouça nem a música do mar, nem a música do vento que balança as folhas dos coqueiros. Uma amiga, voltando de férias de Porto Seguro, disse-me que o barulho das batucadas era tal que ela teve de viajar quarenta quilômetros para ouvir o mar. Faz muitos anos, viajei setecentos quilômetros até Cabo Frio. Quando cheguei à praia, na ilusão do silêncio, fui agredido pelo som infernal que saía de uma barraca. Imagino que chegará um tempo em que todas as praias terão sido estupradas pela insensibilidade humana.
Foi na praia de Mangue Seco, aquela da Tieta do Agreste, a mais linda que já vi, areias brancas alisadas pelo mar imenso, mar sem fim, azul, verde e branco. Meu filho Sérgio tinha três anos quando viu o mar pela primeira vez. Em silêncio ficou a contemplar o mar, as ondas se quebrando sem cessar. E me perguntou: “O que é que o mar faz quando a gente vai dormir?” Era-lhe incompreensível a eternidade do mar. Também me espanto e me pergunto, sem resposta: “Há quanto tempo o mar se quebra alisando a areia?” O mar, a praia, as conchas, o céu, os peixes invisíveis nas profundezas, as gaivotas em voo, me falam da eternidade. Senti-me retornado ao início do mundo: “Foi, desde sempre, o mar...” Até as marcas dos pés, coisas do tempo, haviam sido apagadas pelo vento e pelas ondas. Solidão,


solidão robusta,
uma solidão para todos os lados,
uma ausência humana
que se opõe ao mesquinho formigar do mundo
(Cecília Meireles)


Senti o que sentia Murilo Mendes: “O minúsculo animal que sou acha-se inserido no corpo do enorme Animal que é o universo.” Universo, Animal enorme que me faz viver... Que mais bela experiências místicas posso desejar? Eu e o universo em silenciosa harmonia... Que milagre ou aparição de Virgem pode se comparar a esse sentimento? Eu, infinitamente pequeno, grão de areia e, ao mesmo tempo, infinitamente grande, bebendo o universo com meus olhos...
Quero me mudar para a Bahia. Mas sei que não vou me mudar para a Bahia. E não importa que seja a Bahia. As montanhas de Minas com suas matas e cachoeiras, o mar em cima porque

O mar de Minas não é no mar
O mar de Minas é o céu,
Pro mundo olhar pra cima e navegar
Sem nunca ter um ponto onde chegar.

- também as montanhas de Minas são parte do enorme Animal que é o universo... Quem sabe Pasárgada? Ou Maracangalha...
Todo mundo tem nostalgia por um outro lugar. Todo mundo gostaria de se mudar para um outro lugar mágico. Mas são poucos os que têm coragem de tentar. Talvez por saberem que a Bahia, como Pasárgada, não existe. Ela é um sonho que encanta, que acorda o cavalo selvagem desembestado pelas planícies do infinito. Mas a duração é curta porque a Bahia só existe no efêmero tempo das férias, dentro de uma bolha encantada de eternidade. Quando se volta lá, à procura, descobre-se que a bolha estourou e a Bahia mudou... Para onde terá ido? O triste é que o sonho acaba, mas o cavalo selvagem que o sonho acordou continua vivo. Quer galopar, relinchar, saltar... Mas não tem jeito. No mundo real os cavalos andar devagar, em círculos, sempre o mesmo caminho, fazendo girar a mó. E, enquanto andam, sonham que querem se mudar para a Bahia...
Sobra a memória: as lavadeiras alegremente lavando roupas dentro dos riachos de água límpida; sobra o brilho do sol da tarde refletindo na água espraiada na areia; sobram os divertidos caranguejos assustados correndo de lado com seus olhos-periscópicos esticados...; sobra a imensidão do mar; sobra a imensidão das praias; sobram o azul, o branco, o verde; sobra o silêncio das vozes dos homens; sobra céu estrelado; sobram os coqueirais, a água de coco...; sobra a sensação de se estar em paz com a vida. Disse a Adélia: “Aquilo que a memória amou fica eterno.” Talvez eu não precise me mudar para a Bahia porque ela sobrou dentro de mim...

Rubem Alves

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